03 dezembro 2010

JURISPRUDÊNCIA CRÍTICA – ACÓRDÃO DO TRIBUNAL SUPREMO DE 24 DE SETEMBRO DE 2008 (A PRESCRIÇÃO E A CADUCIDADE)

1. 1. 1. A repercussão do tempo nas situações jurídicas. Considerações gerais

O não exercício de direitos durante certo lapso de tempo determina a sua extinção, que pode ocorrer por prescrição ou por caducidade. Trata-se, com efeito, de um desaparecimento do direito que se justifica pela inércia do seu titular consubstanciada no desinteresse[1] em exercitá-lo bem como por razões de certeza e segurança jurídica que impõem que ao fim de determinado lapso de tempo as situações jurídicas fiquem inalteravelmente definidas[2].

Por forma a viabilizar a operacionalização destas figuras, existem uma série de prazos fixados por lei, sendo certo que, em determinadas circunstâncias, para o caso da caducidade, é concedida às partes o direito de fixarem, por acordo, prazos distintos dos previstos na lei (art. 330º do C.C.[3]).

A prescrição e a caducidade, embora conduzam ao mesmo resultado – extinção do direito –, obedecem, em grande medida, à regras distintas e inconciliáveis. Aliás, o próprio legislador, sem prejuízo das disposições gerais que lhes são aplicáveis, fixa as regras especiais que determinam o regime jurídico de cada uma delas. Assim, olhando para o regime fixado no Código Civil, que subsidiariamente se aplica a generalidade dos ramos do Direito, à prescrição aplicam-se[4] as disposições compreendidas entre os artigos 300º a 327º, e à caducidade as compreendidas entre os artigos 328º a 333º.

Dada a diferença de regime de cada uma destas figuras, podemos assim concluir, com alguma tranquilidade, que para cada caso concreto de decurso de determinado prazo ou se aplicam as regras da prescrição ou as da caducidade, e não ambas simultaneamente. No entanto, com alguma estranheza, no acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, em sede de recurso de apelação dos autos que, sob o nº 198/93, correram na Secção Cível daquele Tribunal, constatamos um recurso indistinto às regras da prescrição e da caducidade, o que quanto a nós é incorrecto. Por uma questão de conveniência e metodológica, transcrevemos parcialmente o referido acórdão.


2. Dos termos do acórdão – Autos de apelação nº 198/93, Secção Cível

“Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal Supremo:

Gomes Mapsangue Machalele, …, veio junto da Comissão Provincial de Justiça no Trabalho Matola, intentar uma acção de impugnação de despedimento sem justa causa, contra a sua entidade empregadora Empresa de Construção, Gestão e Manutenção Predial, E.E., tendo por base os fundamentos descritos na petição inicial de fls….

(…)

Por não se ter conformado com a decisão assim tomada, a ré interpôs recurso para a Comissão Nacional de Justiça que acabou por não tomar qualquer posição, por entretanto se ter extinguido, por força da Lei nº 18/92, razão pela qual acabou sendo esta instância a admiti-lo.

(…)

Colhidos os vistos legais, cumpre passar a apreciar e decidir.

Nos presentes autos, como prévia, levanta-se uma questão que a proceder, por obstar ao conhecimento do fundo da causa, importa passar a analisar de imediato. Questão esta que tem a ver com o direito à acção.

Na verdade, como se demonstra do termo aposto na petição inicial de fls. 3, a presente acção foi proposta no dia no dia 08 de Outubro de 1991 e do artigo 3º daquela mesma peça processual dá-se como provado que o apelado tomou conhecimento do despedimento no dia 17 de Julho daquele mesmo ano.

Significa isto que o apelante recorreu aos meios jurisdicionais para impugnar a decisão de rescisão do vínculo jurídico-laboral direito dois meses e vinte e um dias após a tomada de conhecimento do despedimento.

Acontece que, de acordo com o estabelecido no nº 5 do artigo 25 da Lei nº 8/85 Lei do Trabalho[5], aplicável no caso vertente, a impugnação de justa causa de despedimento tem de ser feita no prazo peremptório de 30 dias, contados da data em que o trabalhador toma conhecimento da sua desvinculação do posto de trabalho.

Ora, como resulta por mais evidente, o apelado desencadeou os meios jurisdicionais muito para além do prazo legalmente cominado, o que o colocou na situação jurídica de perder o direito à acção.

A perda do direito à acção equivale à prescrição do direito, o que, para efeitos processuais, se traduz na excepção peremptória prevista na alínea b) do art. 496º do C.P.Civil, a qual é do conhecimento oficioso, nos termos do preceituado pelo nº 1 do artigo 333º do C.P.Civil, por dizer respeito à matéria excluída da disponibilidade das partes.

Excepção peremptória que, de acordo com o disposto pelo nº 3 do artigo 493º da lei processual civil conduz, neste caso, à absolvição da total do pedido.

Por se mostrar procedente a presente excepção que deixe de interessar analisar, não só as irregularidades processuais acima descritas e os seus efeitos, como o próprio fundo da causa.

Nestes termos e pelo exposto, julgo procedente a excepção peremptória acima descrita, revogam a decisão da primeira instância e absolvem do pedido a apelante.

(…)

Maputo, aos 24 de Setembro de 2008”


3. Da análise do acórdão

3.1. Da questão prévia levantada pelo Tribunal e da identificação da sua natureza jurídica

No acórdão ora em análise, o Tribunal Supremo levantou oficiosamente (por iniciativa própria)[6] uma questão prévia que acabou conduzindo a absolvição (da apelante[7]) do pedido. Trata-se do direito à acção que precludiu pelo decurso do prazo para impugnar a justa causa de despedimento que, de acordo com o nº 5 do art. 25 da Lei nº 8/85, de 14 de Dezembro (Lei do Trabalho aplicável ao caso), era de 30 dias a contar da data em que o trabalhador tivesse tomado conhecimento da sua desvinculação do posto de trabalho.

Dada a sua pertinência, transcreve-se o teor do nº 5 do art. 25 da Lei nº 8/85, de 14 de Dezembro: “a impugnação de justa causa de rescisão deve ser feita no prazo de trinta dias e será decidida pelos órgãos de Justiça no Trabalho, segundo o prudente arbítrio dos seus membros e de harmonia com as circunstâncias do caso”.

Porque o trabalhador (apelado) recorreu (impugnando o seu despedimento) aos meios jurisdicionais fora daquele prazo, ou seja, volvidos dois meses e vinte e um dias, o Tribunal Supremo entendeu que o seu direito à acção (naquele caso) prescreveu, remetendo mesmo para a al. b) do art. 496 do Código de Processo Civil[8], que identifica a prescrição como uma excepção peremptória.

Ora, com o devido respeito, que não é pouco, não nos parece que estejamos aqui perante um prazo prescricional.

A este propósito, mostra-se de grande utilidade o disposto no nº 2 do art. 298º do Código Civil[9] ao qual damos voz na “primeira pessoa” – “Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição”. São vários os casos em que a lei ao fixar um prazo para o exercício de um direito di-lo expressamente tratar-se de um prazo de prescrição, afastando-se deste modo, por maioria de razão, a aplicação das regras de caducidade – vejam-se, por exemplo, os arts. 482º, 498º, todos do C.C., art. 56, nº 2 do art. 65, todos da Lei nº 23/2007, de 1 de Agosto, que aprova a actual Lei do Trabalho.

Quer isto dizer que se a lei[10] não refere expressamente (de forma directa e inequívoca) estarmos perante um prazo de prescrição, temos que entender – é a orientação legal – que estamos perante um prazo de caducidade e, por conseguinte, aplicar as regras da caducidade[11].

Usando esta bitola, e porque o nº 5 do art. 25 da Lei nº 8/85, de 14 de Dezembro, não refere expressamente que o prazo nele contido de trinta dias é de prescrição, deveria o Tribunal Supremo tê-lo qualificado como sendo um prazo de caducidade, o que não o fez.


3.2. Da aplicação indistinta dos regimes da prescrição e da caducidade

A indevida qualificação jurídica do prazo por parte do Tribunal Supremo, no acórdão ora em análise, conduziu este órgão jurisdicional a aplicar simultaneamente regras de prescrição e de caducidade, o que igualmente, quanto a nós, não é correcto.

Tal facto se reflecte no parágrafo em que o Tribunal Supremo afirma que “a perda do direito à acção equivale à prescrição, o que, para efeitos processuais, se traduz na excepção peremptória prevista pela alínea b) do artigo 496º do C.P.Civil, a qual é do conhecimento oficioso, nos termos do preceituado pelo nº 1 do artigo 333º do C.Civil, por dizer respeito à matéria excluída da disponibilidade das partes”.

Como se constata, o Tribunal Supremo qualifica o prazo ora em causa como de prescrição e depois identifica-a como sendo uma excepção peremptória nos termos da al. b) do art. 496º do C.P.C..

A título meramente académico, admitamos que tal qualificação estivesse correcta. Se se tratasse de um prazo prescricional é evidente que a al. b) do art. 496º do C.P.C. – que identifica a prescrição como sendo uma excepção peremptória – seria chamada à colação. Mas, a arguição de tal excepção nunca poderia ser feita oficiosamente como, recorrendo ao nº 1 do art. 333º do C.C., o Tribunal Supremo o faz. O Tribunal, dispõe o art. 303º do C.C., “não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público”. Ora, como decorre da lei, o decurso do prazo prescricional (se se tratasse efectivamente de um prazo prescricional) não deveria ser suscitado pelo Tribunal, mas sim, no caso em análise, por aquele a quem a prescrição aproveita, ou seja, pelo apelante (a empresa).

Até porque o nº 1 do art. 333º do C.C., ao qual o Tribunal Supremo recorreu para justificar a arguição oficiosa da prescrição é uma disposição aplicável aos casos de caducidade que sob a epígrafe “apreciação oficiosa da caducidade” dispõe que “a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes”.

Perante o exposto, sem muito receio mas salvaguardando o devido respeito, não podemos deixar de concluir que o Tribunal Supremo aplica indevidamente dois regimes distintos (a prescrição e a caducidade) à mesma situação.


3.3. Do Dever-Ser

I. Perante os factos vertidos no acórdão sub judice, não temos reservas em qualificar o prazo contido no nº 5 do art. 25 da Lei nº 8/85, de 14 de Dezembro, como sendo um prazo de caducidade, pois, a referida disposição legal, conferindo ao trabalhador (apelado) o direito de impugnar o despedimento dentro do prazo de 30 dias, não refere expressamente estarmos perante a prescrição, termos em que, pela aplicação do nº 2 do art. 298º do C.C., devem ser aplicadas as regras da caducidade. É este que, a nosso ver, deveria ser o ponto de partida do Tribunal Supremo.

II. Na esteira deste arranque, legitimar-se-ia o recurso ao disposto no nº 1 do art. 333º do C.C., para fundamentar a arguição oficiosa da caducidade do direito de impugnar a justa causa do despedimento por parte do apelado (trabalhador).

III. É verdade que, de acordo com o disposto no nº 3 do art. 493º do C.P.C., a caducidade representa uma excepção peremptória, pois importa a extinção de um direito, no caso, de impugnar a justa causa do despedimento (ou como o Tribunal Supremo refere, do direito à acção). E tal qualificação nem sequer é impedida pelo art. 496º do C.P.C., pois este preceito legal, enumerando as excepções peremptórias, não o faz de forma taxativa, admitindo que sejam tomadas como tais quais outras causas impeditivas, modificativas ou extintivas dos direitos que importem a absolvição total ou parcial do pedido. Nestes termos não deveria o Tribunal Supremo recorrer a aplicação da al. a) do art. 496º do C.P.C., que apresenta a prescrição como uma excepção peremptória, mas sim a caducidade (arts. 298, nº 2 e 328 e seguintes, todos do C.C.).

IV. É nestes termos que julgamos que a decisão da Secção Cível do Tribunal Supremo, proferida como culminar dos autos de apelação nº 198/93, deveria ser tomada.



[1] Quer este desinteresse seja intencional ou não, pois a nossa lei, no art. 6º do C.C. acolhe o principio da irrelevância do desconhecimento ou má interpretação da lei.

[2] Entre outros, vide, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1998, p. 464; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 375/6.

[3] Determina esta disposição que “são válidos os negócios pelos quais se criem casos especiais de caducidade, se modifique o regime legal desta ou se renuncie a ela, contanto que não se trate de matéria subtraída à disponibilidade das partes ou de fraude às regras legais da prescrição”.

[4] Em grande medida.

[5] Trata-se da Lei do Trabalho que este em vigor até a aprovação da Lei nº 8/98, de 20 de Julho, que entretanto foi igualmente revogada pela Lei nº 23/2007, de 1 de Agosto.

[6] Infere-se que tenha sido por iniciativa própria porque num dos parágrafos o Tribunal afirma que se tratava de uma questão de conhecimento oficioso remetendo para o nº 1 do art. 333º do C.C.

[7] A apelante é a empresa que, não se conformando com a decisão, interpôs recurso de apelação.

[8] Adiante C.P.C.

[9] Adiante C.C.

[10] Porque não se justifica ao presente caso, afastamos os casos em que o prazo para o exercício de determinado direito resulte de vontade das partes.

[11] A propósito da distinção entre prescrição e caducidade escreve Mota Pinto que, “segundo o critério tradicional, clássico, a prescrição aplica-se aos direitos subjectivos propriamente ditos, enquanto que a caducidade visará os direitos potestativos. A nossa lei (não nos esqueçamos que o nosso Código Civil foi herdado dos Portugueses e, mantém, nesta parte, inalterável) seguiu, porém, um critério formal, afirmando que quando um direito deva ser exercido durante certo prazo se aplicam as regras da caducidade, salvo se a lei se referir expressamente a prescrição (art. 298º, nº 2)”. Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit, p. 374.

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