26 outubro 2010

Tribunais Superiores de Recurso - Breve Reflexão

1. Considerações Gerais

A Assembleia da República, concretizando a faculdade contida no nº 3 do art. 223 da Constituição da República de Moçambique (de 2004), – que lhe permitia instituir Tribunais de escalão intermédio (entre os Tribunais Judiciais de Província e o Tribunal Supremo), – criou, através da Lei nº 24/2007, de 20 de Agosto (que aprova a Lei da Organização Judiciária e revoga a Lei nº 10/92, de 6 de Maio[1]), os Tribunais Superiores de Recurso (al. b) do nº 1 do art. 29 da referida Lei).

A mesma Lei regula, entre outras, as questões relacionadas com a natureza (art.58), sede e jurisdição (art. 59) organização (art. 60), composição (art. 61), competência (arts. 62 a 67), e cria os Tribunais Superiores de Recurso de Maputo, Beira e Nampula (114), bem como determina que “enquanto não entrarem em funcionamento os Tribunais Superiores de Recurso, as secções do Tribunal Supremo continuam a exercer as competências conferidas, por lei, àqueles tribunais de escalão intermédio” (art. 115).

Assim, ao abrigo das competências conferidas pelo art. 31 da LOJ, o Presidente do Tribunal Supremo, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura Judicial[2], determinou, por Despacho de 18 de Maio de 2010 (publicado no Boletim da República nº 32, I série, de 11 de Agosto de 2010)[3], a “criação e entrada em funcionamento de sete secções nos Tribunais Superiores de Recurso de Maputo, Sofala e Nampula”, sendo que o primeiro funcionaria com três secções e os dois últimos com duas secções.


2. Problemas e/ou Lapsos

A análise cuidada deste Despacho permite-nos levantar alguns problemas importantes, em particular para os que no seu dia-a-dia lidam com o Direito, quer enquanto profissionais quer enquanto estudiosos. De forma resumida apresentamos nas linhas que se seguem as nossas inquietações.

I. Do prazo para a Entrada em Funcionamento dos Tribunais Superiores de Recurso

O nº 3 do art. 114 da LOJ determina que “os tribunais judiciais indicados no nº 2[4] devem entrar em funcionamento até um ano após a publicação[5] da presente Lei”. Assim, tendo a LOJ sido publicada a 20 de Agosto de 2007[6], então aquele prazo de um ano precludiu no dia 20 de Agosto de 2008, ou seja, há mais de dois anos.

Esta disposição, como o seu texto sugere, é de carácter imperativo (e não facultativo). O legislador entendeu que num prazo de um ano, e não em dois ou mais anos, deveriam os Tribunais Superiores de Recurso entrar em funcionamento. Certamente que alguma motivação (muito provavelmente, a de imprimir maior celeridade processual) precedeu a fixação daquele prazo. Representaria um arrepio aceitar que aquele prazo desempenha, na disposição em que se encontra incerta, funções meramente estéticas.

No entanto, e porque o curso da vida de um país nem sempre é o ideal, podem existir circunstâncias de força maior que impossibilitem o cumprimento dos prazos. Mas se fosse essa a situação justificativa do atraso acima mencionado, é nosso entendimento que, no mínimo, deveria constar daquele Despacho a enunciação das razões (ponderosas) justificativas do mesmo.

II. Tribunal Superior de Recurso da Beira ou Tribunal Superior de Recurso de Sofala

A LOJ criou, tal como resulta do art. 114, três Tribunais Superiores de Recurso, designadamente:

a) O Tribunal Superior de Recurso de Maputo, exercendo, provisoriamente, jurisdição sobre os Tribunais Judiciais das Províncias de Maputo, Gaza, Inhambane e Cidade de Maputo;

b) O Tribunal Superior de Recurso da Beira, exercendo, transitoriamente, jurisdição sobre os Tribunais Judiciais das Províncias de Sofala, Manica e Tete; e

c) O Tribunal Superior de Recurso de Nampula, exercendo, transitoriamente, jurisdição sobre os Tribunais Judiciais das Províncias da Zambézia, Nampula, Cabo Delgado e Niassa.

Estranhamente, o Despacho do Juiz Presidente do Tribunal Supremo alterou a designação do Tribunal Superior de Recurso da Beira, denominando-o Tribunal Superior de Recurso de Sofala[7].

Escusamo-nos de recorrer a grandes construções doutrinárias para afirmar que um despacho do Presidente do Tribunal Supremo não pode alterar uma Lei (in casu, a LOJ). Deste modo, através de uma interpretação correctiva do texto incerto naquele Despacho somos impelidos irresistivelmente a concluir que onde se lê “Tribunal Superior de Recurso de Sofala”[8] deverá ler-se “Tribunal Superior de Recurso da Beira”.

III. Da Falta de Nomeação dos Juízes dos Tribunais Superiores de Recurso e das Suas Consequências

Mas mais grave do que as duas críticas acima apontadas é o facto de o Despacho do Presidente do Tribunal Supremo ter determinado, com efeitos imediatos a entrada em funcionamento dos Tribunais Superiores de Recurso quando, até a presente data, ainda não foram nomeados os respectivos Juízes, mormente os Juízes Presidentes (que de acordo com o art. 64 da LOJ, devem ser nomeados pelo Tribunal Supremo ouvido o CSMJ). Aliás, nem mesmo é do domínio público o lugar físico em que cada um dos Tribunais Superiores de Recurso funcionarão.

E, a propósito da entrada em funcionamento dos Tribunais Superiores de Recurso, dispõe o nº 1 do art. 115, que “enquanto não entrarem em funcionamento os tribunais superiores de recurso, as secções do Tribunal Supremo continuam a exercer as competências conferidas, por lei, àqueles tribunais de escalão intermédio”. Ora, se a competência transitória do Tribunal Supremo estava condicionada a entrada em funcionamento dos Tribunais Superiores de Recurso, então, não podemos deixar de concluir que a mesma cessou com a proferição do Despacho do Presidente do Tribunal Supremo que determinou a entrada em funcionamento destes Tribunais – não vemos outra solução aceitável.

Quer isto dizer, por um lado, que, embora exista um Despacho que determina a entrada em funcionamento dos Tribunais Superiores de Recurso o certo é que estes Tribunais não poderão ainda conhecer das questões que são, por Lei, da sua competência, mormente, julgar os recursos das decisões proferidas pelos Tribunais Judiciais de Província (arts. 62 e 63), pois, não foram ainda nomeados os respectivos juízes – sem juiz não temos Tribunal. Por outro lado, o Tribunal Supremo também já não pode conhecer das questões da competência dos Tribunais Superiores de Recurso, pois, o Despacho do Presidente do Tribunal Supremo que ordenou a entrada em funcionamento destes Tribunais determinou a cessação da sua competência transitória – o conhecimento destas causas pelo Tribunal Supremo estaria inquinada do vício de incompetência.

Assim, enquanto os Juízes dos Tribunais Superiores de Recurso não forem nomeados e iniciarem o exercício das suas funções, as questões da competência destes Tribunais ficarão órfãs e acumular-se-ão dia após dia, o que contribuirá negativamente na celeridade processual.

Este vazio, resultante da impossibilidade prática (falta de juízes) dos Tribunais Superiores e da impossibilidade legal cessação da competência transitória) do Tribunal Supremo, poderem conhecer, mormente, dos recursos dos Tribunais Judiciais de Província, remete-nos – não resistimos a tentação de o dizer – a uma situação de denegação de justiça, que só pode ser minimizada se, num curto espaço de tempo, forem nomeados os juízes para os Tribunais Superiores de Recurso e iniciarem efectivamente com o exercício das suas funções.


[1] Adiante LOJ.

[2] Adiante CSMJ

[3] Adiante designado Despacho do Presidente do Tribunal Supremo.

[4] Tratam-se dos Tribunais Superiores de Recurso de Maputo, Beira e Nampula.

[5] Publicação e não entrada em vigor. Relativamente a entrada em vigor desta Lei o art. 120 determina que este facto teria lugar 180 dias após a sua publicação.

[6] Boletim da República nº 33, I SÉRIE, Suplemento, de 20 de Agosto de 2010.

[7] Beira é a Cidade capital da Província de Sofala.

[8] O lapso é cometido, no referido Despacho, por duas vezes.